Almyr Gajardoni*
No mundo musical, 7 de maio de 1824 é uma data muito especial: é o dia da primeira apresentação da maravilhosa Nona Sinfonia, composta por Ludwig van Beethoven. Foi no Kärnthnerthor Theater de Viena, inteiramente lotado por um público que, deslumbrado, reagiu com “uma trovoada de aplausos”, segundo registram os biógrafos do grande compositor.
Este, no entanto, durante o espetáculo, que incluiu outras duas composições suas – a Abertura, opus 124, e o Kyrie, o Credo e o Agnus Dei da Missa Solemnis – passou todo o tempo folheando as partituras e marcando o tempo, indiferente à música e ao entusiasmo dos espectadores. Beethoven estava completamente surdo e jamais pôde ouvir, como nós, felizardos, a sua obra-prima.
Essa contraditória relação entre música e surdez, no entanto, não é uma singularidade da vida de Beethoven. Na cidade de Bauru, bem lá no centro geográfico do Estado de São Paulo, uma repartição da administração pública estadual a utiliza rotineiramente, com resultados extraordinários e comoventes.
Falo do Hospital de Reabilitação de Anomalias Crânio-Faciais, mais conhecido como “o Centrinho da USP”, nessa especialidade uma reconhecida referência internacional. Acontece em dois departamentos – o Centro Educacional do Deficiente Auditivo (Cedau) e o Núcleo Integrado de Reabilitação e Habilitação (NIRH).
O Cedau tem um coral formado por crianças de 2 a 14 anos que, nascidas parcial ou totalmente surdas, são submetidas desde cedo a intensivo treinamento para desenvolver a capacidade de falar. Em 2001, de uma improvisada cantoria na festa de aniversário do Centro surgiu a idéia de criar um coral. Pois ele existe, é formado por 33 crianças deficientes auditivas, que fazem rotineiras apresentações públicas com um entusiasmo que aquele alquebrado Beethoven, também surdo, não conseguiu oferecer a seus admiradores. Quando começam a receber esse treinamento bem cedo, por volta dos 2 anos, as crianças conseguem ótimos resultados no desenvolvimento da fala. “A criança diagnosticada precocemente responde melhor à reabilitação e ao treinamento da voz. E a música é um complemento importante do nosso trabalho”, explica a pedagoga Kátia Fugiwara.
Ainda tem mais – esse Centrinho é mesmo da pá virada. Além do coral dos deficientes auditivos mirins do Cedau, que conseguem aprender a falar, ele tem o coral do NIRH, com 35 cantores de 7 a 25 anos, completamente surdos, que não receberam treinamento bem cedo, e por isso não falam. Cantores que não falam – tão extraordinário quanto Beethoven, um compositor surdo. Esse coral também foi criado em 2001. “Achávamos que o surdo também podia se comunicar por meio da música, igual a qualquer outra pessoa”, explica a coordenadora Maria José.
Como é possível? Eles utilizam a linguagem de sinais Libras – cantam fazendo sinais. Mas não se trata de apenas fazer sinais, com as mãos e os dedos, no palco. Essa reconstrução lingüística é um processo lento, desenvolvido com a ajuda da fonoaudiologia, da pedagogia, da psicologia e de Libras.
Trabalha-se a letra, o sentido, a autoria, repetem-se mil vezes exercícios de interpretação corporal e facial. Por isso eles aprendem no máximo duas músicas por ano.
Luís Augusto Pires Júnior, 17 anos, um dos cantores, explica a sensação de estar no palco cantando dessa forma: “É muito legal ver que todas as pessoas estão olhando para você. Dá emoção e felicidade. Às vezes me sinto como um cantor famoso, igual àqueles da televisão. No coral, pareço um deles.”
Jornalista, chefe do Núcleo de Redação da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
Fonte: blog do Noblat
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