Adiretora da Petrobras admitiu num café da manhã
concedida aos jornais, no dia 17 do corrente, que ela “precisa ser investigada.
Os diretores, nós precisamos ser investigados.”
Seu axioma é simples: eu não temo a verdade, logo
admito uma investigação. A perquirição é, em princípio, incompatível com a
verdade; ou, melhor dizendo, ela conduziria a uma prova de que tanto a diretora
quanto a sua diretoria nada têm a ver com a petrogatunagem que envergonha o
empresariado nacional e enxovalha o governo Dilma, o PT e seus sequazes.
É o pior presente de Natal da história do Brasil.
Mas esse brado de auto-investigação permite uma
ressalva que eu tomo a liberdade de fazer com um pedido de vênia à sra. Graça
Foster.
Um inquérito não comprova a verdade. A investigação
é um meio para se chegar à verdade ou à mentira. Ou, talvez pior que isso e
como estamos fartos de testemunhar, a investigação, o julgamento, os recursos
proporcionados aos poderosos pela nossa douta teologia jurídica, na qual uma
ética de isenção passa ao largo, simplesmente legalizam a falcatrua e, assim
fazendo, legitimam o lado mais sombrio da impunidade. Faz-se a injustiça por
meio da Justiça!
Eis uma inversão inadmissível em qualquer
coletividade minimamente honrada e fiel a si mesma. Torturar, roubar e
assassinar não deve santificar ninguém.
Guimarães Rosa dizia que “o começo é tudo".
Uma vez montado um plano, um enredo ou uma política, essas máquinas demandam
coisas insuspeitas dos seus autores. Se o enredo requer um velho e os atores
são jovens, há que se usar um maquiador para tornar um jovem, velho. No regime
militar, montou-se um teatro que excluía parte da plateia.
Se o caminho foi para Sul ou para o Norte, o que se
segue é — desculpem o óbvio — seguido. Mudar o passo no meio do salto resulta
em queda ou desastre. Quando escolhemos um rumo, este rumo faz demandas e nos
coage a tomar certas atitudes. Quando um regime que pretende restaurar a ordem
promove e proíbe a discordância, como foi o caso do regime militar, tudo
torna-se político e passível de ser investigado. Um piscar de olhos vira sinal
de uma conspiração, e uma música, um hino revolucionário. Se a porta tem uma
pequena brecha, é preciso arrombá-la, o que leva à criação de portas de aço.
Não há como obter democracia negando aquilo que é a
própria democracia: o direito de discordar. Suprima-se esse
princípio e você inventa, em nome da ordem, a subversão e a traição.
A violência surge quando o direito de criticar e
discordar é escamoteado ou proibido em nome de alguma coisa. Investigar e se escandalizar
com a roubalheira da Petrobras não significa que se quer acabar com ela. Pelo
contrário, o que se deseja é salvá-la. O reinado da lei só existe quando a lei
não foi rasgada ou controlada por uns poucos ou em nome de algo intocável ou
sagrado. Pois a lei é o meio pelo qual, numa sociedade de iguais em direitos,
valores são invocados, disputados e discutidos e trocam de lugar como verdades
ou mentiras. A mobilidade é parte da vida democrática e ela inclui também
crenças, utopias e tabus.
Um velho sábio dizia que não se pode viver sem a
mentira, que é companheira da verdade. Mas se verdade e mentira formam um par,
esse par só é legitimo na medida em que a mentira não seja estimulada. Em
outras palavras, não se constitua como um valor.
O clamor da diretora pode ser interpretado neste
sentido. Nele, há o grito do aprendiz de feiticeiro pedindo socorro a um bom
exorcista. O fogo começa a pegar naqueles que talvez o ignoravam ou achavam que
podiam controlá-lo. Não sei...
O que sei e lamento é que quando o escândalo vira
rotina, há algo profundamente tortuoso com os valores de um país. Não há como
não concordar com FHC que o Brasil perdeu o rumo. E, num sistema sem rumo, nem
o capitalismo que promoveria o fim do mundo termina; e seria impossível
conceber uma nova utopia com um comissariado desonesto. Aliás, com esse elo
estrutural entre política e roubalheira, não dá nem para nomear um ministério.
Não se trata simplesmente de separar a honestidade
da corrupção, fazendo um ingênuo pacto político para eliminar a ladroagem. O
honesto e o desonesto, como o bem o mal, fazem parte da mesma moeda e ocorrem
em todo lugar. A questão não é tentar acabar com um lado que não existe sem o
outro, mas compreender que a desonestidade só é normal se for ilegitimada e
punida.
Com os dois pesos e medidas da velha malandragem
nacional estudada por mim faz tempo, a verdade não sai do fundo do poço. A
honestidade só vai se transformar num valor quando a desonestidade perder a sua
aura de santidade e esperteza. Precisamos, sim, ser investigados porque estamos
perdidos num labirinto que construímos e jogamos fora o fio de Ariadne: o valor
— escolha do caminho da luz e da lei. A capacidade de dizer não a nós mesmos.
Termino desejando a todos os que me honram lendo
esta coluna um Feliz Natal e Próspero Ano Novo. (O Globo)
Roberto DaMatta é antropólogo
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