Jornalismo e história
A realização do Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira, em fevereiro de 1989 foi, na verdade, um encontro quase planetário dividindo dois momentos: o primeiro, que alardeava ser o Brasil um exemplo ao mundo por seu potencial e utilização de usinas hidrelétricas, não poluentes, visto ser a produção de eletricidade livre de combustíveis fósseis. Era a fase da então chamada "energia limpa", sem as termelétricas e sem as usinas atômicas.
A partir daquela mega-reunião internacional, as hidrelétricas passaram a ser vistas pelo lado oposto, como instrumentos devastadores do maio ambiente e um grave estorvo aos povos indígenas e demais ribeirinhos. Era, então, preciso lutar contra elas, como se verifica até hoje. Belo Monte se tornou, talvez, a marca mais forte dessa luta.
Foto: projetocolabora.com.br |
Passei dez dias em Altamira, acompanhando juntamente com o fotógrafo Celivaldo Carneiro, o máximo do que ali acontecia. Em alguns momentos quase foi impossível dar conta da tarefa, tantos eram os atores presentes e o volume de temas e demandas de que a Princesa do Xingu foi palco privilegiado para qualquer jornalista. Fazíamos uma página diária para O Liberal, de Belém, eu trabalhava uma matéria especial para a revista Afinal, de São Paulo, passava um boletim diário para a Rádio Liberal e outro para a Rádio Rural de Santarém. Ao final, ainda nos sobrou tempo e dinheiro para irmos à Transamazônica ver a usina do Pacal e seus canaviais, e uma rápida visita à reserva dos índios Arara.
A seguir estão dois textos publicados na época, hoje mais história do que jornalismo, e que podem contribuir para a compreensão dos mais jovens do que se passa e se passou nessa intensa luta do presente.
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Altamira, capital da ecologia.
Desde o dia 30 de janeiro de 1974 a cidade paraense de Altamira não se sentia tão importante. Naquela data, o então presidente Emílio Médici apertou a mão de seu ministro dos Transportes, Mário Andreazza, diante da placa de bronze que acabava de descerrar em comemoração aos 40 meses de trabalho de abertura da BR-230. A Transamazônica era entregue ao tráfego de veículos. Naqueles dias, quando a consciência ecológica era quase inexistente e sobretudo, pela quase impossibilidade de expressá-la, tudo foi festa. A Amazônia estava mais perto geograficamente do Brasil.
Esta semana, Altamira volta a ser importante por sediar o 1º Encontro das Nações Indígenas do Xingu e o primeiro encontro de ecologistas não-governamentais para protestar contra a maneira como o governo entende ser o progresso iniciado há 15 anos. Uns e outros dizem-se favoráveis ao progresso, cada um, no entanto, com visão e propostas tão diferentes que chegam ao antagonismo. Por isso, com certeza, a modesta “Princesa do Xingu” terá uma semana não de festas, mas será um caldeirão no qual vão ferver pontos de vista e interesses os mais divergentes, possivelmente acirrados pela luminosidade que estão emprestando ao acontecimento a imprensa nacional e estrangeira.
“A presença de comunidades indígenas representa um dos problemas ambientais de maior complexidade no planejamento e implementação de usinas hidrelétricas e linhas de transmissão”, diz a Eletrobrás, em seu relatório de 1986. De lá para cá, a holding do setor elétrico vem desenvolvendo todo um sistema de marketing com vistas a ganhar da opinião pública a simpatia para as profundas interferências que promove no ecossistema amazônico, com as conhecidas repercussões sociais e econômicas que daí resultam.
Para os ambientalistas esse esforço da Eletrobrás é mero “gerenciamento” de uma política autoritária que coloca “o Estado contra as sociedades indígenas”.
É o que dizem: “A implantação do Complexo Hidrelétrico de Altamira, parte já definida de um gigantesco plano de aproveitamento hidrelétrico da bacia do rio Xingu, ameaça imediata e diretamente sete povos indígenas que habitam esta região. As usinas de Kararaô e Babaquara e seus reservatórios representam um passo decisivo na história da verdadeira guerra movida pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas. Os Juruna, Arara, Xicrim, Assurini, Araweté e Parakanã estarão diante de um salto qualitativo no processo de confinamento e expropriação territorial, redução demográfica, sujeição política e destruição sócio-cultural a que são submetidos desde o final do século 16”.
Alternativa
Em Altamira as classes dirigentes também farão a sua parte na defesa do sistema de barragens com as quais o governo pretende fazer deslanchar o chamado Plano 2010, que prevê a construção de dezenas de hidrelétricas no país. Seria essa a alternativa do governo diante do insucesso da política nuclear nacional. Mais ou menos isso foi o que disse Fernando César Mesquita, presidente do recém-criado Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, em Santarém, na quarta-feira passada.
Segundo ele, o governo estaria convencido da alternativa hidrelétrica “até mesmo porque as usinas nucleares são perigosas”. Esse ponto de vista, além dos interesses mais imediatos, é a justificativa para a passeata que os empresários de Altamira pretendem realizar para mostrar ao mundo o que pensam e o que desejam. Os índios e também os defensores da ecologia, têm por seu turno alternativas a oferecer, e o sucesso, em parte, do Encontro, dependerá da lucidez e da objetividade dessas alternativas. Mesmo porque o governo já disse, pela boca do ministro João Alves, do Interior, que “não há possibilidade” de revisão do plano das hidrelétricas do Xingu.
As comunidades indígenas e ribeirinhas dizem, por seus representantes, que as alternativas desse progresso começam pela necessidade de serem ouvidas, consultadas. Afinal, elas têm o sólido argumento de que ocupam as margens do Xingu desde alguns séculos antes da existência da Eletrobrás. Esta, não pelo que diz, mas pelo que projeta e executa, afirma ter pressa, embora sem explicitar em que direção vai essa pressa. E, na correria do autoritarismo que caracteriza o planejamento brasileiro, vai pondo água abaixo o lar dos índios, cidades inteiras, a fauna e a flora sem oferecer aos prejudicados contrapartida justa e indispensável.
Ao transitar pela Amazônia, na semana passada, o ministro João Alves afirmou que o Brasil não pode abrir mão do desenvolvimento da região. Nosso país - disse - ainda tem a fome e há grupos internacionais interessados em impedir que o Brasil se torne uma potência econômica. Embora digam os organizadores do Encontro de Altamira que não haverá debates sobre propostas da ingerência de entidades internacionais na questão ecológica, pois não é esse o objetivo da reunião, a presença maciça da imprensa dos países desenvolvidos será um despertador dessa questão. Algo que os ambientalistas brasileiros têm por obrigação deixar bem claro, em benefício das comunidades indígenas, do ecossistema amazônico e de todos os brasileiros (O Liberal, 20.2.89).
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Não à usina dos caras-pálidas
“... Durante muito tempo o homem branco agrediu o nosso pensamento e o espírito dos nossos antigos, e agora deve parar; nossos territórios são o Sítio Sagrado do nosso povo, moradia do nosso criador que não pode ser violado...” (trecho da carta de Altamira, 24 de fevereiro de 1989, ao final do primeiro encontro das Nações Indígenas no Xingu).
A reunião das 38 diferentes tribos brasileiras em Altamira foi muito mais que um protesto contra a construção da barragem de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu. Foi além do sonoro e preocupado “não” ao complexo hidrelétrico que prevê a construção de 7 usinas na região, até o ano 2010, com seus efeitos negativos e diretos sobre 7 povos indígenas já ressabiados com as tragédias de Tucuruí, Balbina e Itaipu.
Transcendeu a própria política energética do governo para a Amazônia. Foi um momento inédito, e privilegiado, em que os índios, diante do Brasil e do mundo extravasaram o ódio histórico que têm contra o branco, o ódio agora canalizado para a ação política e não mais para a ação violenta com que tentaram se defender durante quase 500 anos, quando foram sempre os perdedores. Perderam tanto que quase desapareceram da face da Terra, dos “sítios sagrados” onde eram cerca de 6 milhões por ocasião do “descobrimento”, reduzidos hoje a 220 mil pessoas. A partir de agora terão canais mais definidos de luta, esquecidos que estão das rivalidades intertribais, para canalizar suas energias na luta “civilizada” contra o branco ainda majoritariamente inimigo do índio.
O gesto da kaiapó Tu-Ira, encostando o facão no rosto de José Antônio Muniz Lopes, diretor de planejamento da Eletronorte, foi acompanhado de palavras não menos contundentes: “Mentira. Sua conversa não vale nada. Por que não vai dizer a verdade lá na nossa aldeia?”. Na verdade, o gesto de Tu-Ira terá sido pouco significativo se observado pelo ângulo da monstruosa dívida que a sociedade branca contraiu com o índio.
Não só o facão foi brandido contra a face de um governo que, para os índios, faz pouca diferença dos tempos em que eles eram objeto de campanhas de extermínio ou laçados para serem vendidos como escravos. Canhon, da aldeia Gorotire, mostrou a Fernando César Mesquita, presidente do Instituto de Meio Ambiente, assim como a Muniz Lopes, seu pesado “koup”, simbolizando a disposição de reverter a história.
“Nós enfrentamos homem, não é uma guerra, mas uma luta de peito aberto”, esbravejou Canhon, entrecortando a palestra do diretor da Eletronorte, para quem a eletricidade é “uma necessidade de toda a sociedade brasileira, em função do desenvolvimento”. Muniz informava que “do ponto de vista da engenharia”, o projeto seria mais simples do que pensavam os índios e ecologistas e que só havia previsão das barragens de Kararaô (rebatizada para Belo Monte, por exigência dos kaiapó, para os quais essa palavra é um grito de guerra) e de Babaquara, esta última já fora de cogitação. Muniz explicou que os trabalhos poderão começar dentro de 5 anos, a um custo inicialmente projetado de quase 7 bilhões de dólares, porém o relatório sobre o impacto ambiental ainda não está pronto.
A Eletronorte confessa, assim, que tinha pouco a dizer no encontro de Altamira. Como afirmar que “somente 344 índios” serão retirados para outras áreas, quando sequer concluiu os estudos sobre os efeitos que a inundação do reservatório levará às áreas indígenas e aos terrenos dos moradores ribeirinhos?
Com a palestra sendo traduzida para a língua kaiapó pelo “embaixador” Bep-Kororoti Paiakan, os índios perceberam o jogo e sequer deixaram Muniz Lopes concluir as explicações. A indignação era tanta que as palavras foram pouco, facões e “koups” entraram em cena para mostrar que, no caso do Xingu, os índios não estão dispostos a se deixar enganar. No projeto de Tucuruí o erro foi de quase 50% sobre o anunciado e as águas cobriram aldeias, lotes, comunidades que ainda hoje reclamam indenização justa.
Internacionalização
Índios e brancos solidários fizeram questão de enfatizar que a jornada de Altamira nada tinha a ver com a propalada internacionalização da Amazônia. Mas coube a uma negra, a deputada federal Benedita da Silva, falar em nome dos ecologistas brasileiros: “Pode até existir interesse internacional para nos tomarem a Amazônia, mas isso nós nunca permitiremos. Queremos o apoio internacional para ocupar a Amazônia e promover o seu desenvolvimento em harmonia com a natureza, mas tudo pelas mãos dos brasileiros”.
Empresários de Altamira fazem colocações idênticas, como Luís Bossatto, presidente da Associação Comercial, favorável às barragens do Xingu. Ele critica as multinacionais que devastam a região e exportam a madeira com preços subsidiados.
Ciente da controvérsia a respeito do movimento ecológico-indigenista, o condutor do encontro dos povos indígenas, Bep-Kororoti, ou Paulino Paiakan, enfatizou que “esta reunião partiu dos próprios índios, ninguém botou nada na nossa cabeça”. Juntamente com o antropólogo e entomologista da Universidade Federal do Pará, Darrel Posey, Paiakan teve há pouco arquivado o processo que o governo moveu contra ambos, empenhados em convencer o Banco Mundial e outras instituições de crédito internacional a somente concederem dinheiro para projetos brasileiros que levem em conta a ecologia. Por conta da chamada internacionalização da Amazônia, o ponto máximo foi a presença de Gordan Matthew Summer, o roqueiro inglês Sting, que esteve menos de 24 horas em Altamira, depois de passar por Brasília e pelo Parque Nacional do Xingu.
A posição de Sting ainda provoca muitas controvérsias: para alguns, ele não deixou muito claro o que foi fazer em Altamira. O anúncio de sua Fundação Mata Virgem foi recebido com algum ceticismo pela imprensa nacional e estrangeira, foi criticado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e não agradou a um de seus amigos, o kaiapó Megaron, diretor do Parque do Xingu, que chegou à cidade no mesmo avião de Sting. Para o Cimi, a proposta de Sting “é desmobilizadora”, enquanto prevê a compra de terras dos índios, não demarcadas ainda, para entregá-las aos próprios índios, na ampliação do Parque do Xingu. Carlos Paiva, assessor do roqueiro, fez questão de afirmar que “Sting nunca falou em comprar terras e a Fundação ainda não possui sequer o arcabouço jurídico”.
Na coletiva que deu no Sítio Betânia, distante 8 quilômetros de Altamira, Sting resumiu o que pensam outros estrangeiros que estiveram no encontro: “Se não defendermos a floresta, o meu país também sofrerá catástrofes porque nós, na Europa, assim como o resto do mundo, precisamos da floresta para sobreviver”. E anunciou que no dia 12 de abril, em companhia de algumas lideranças indígenas, estará em Paris para iniciar campanha internacional de arrecadação de fundos para sua Mata Virgem. Sting não foi expulso de Altamira pelos índios como chegou a ser noticiado, mas chefes kaiapós e os dirigentes da União das Nações Indígenas (UNI) não gostaram nem um pouco do encontro do cantor com Sarney, antes de seguir viagem para o Xingu. A escala em Brasília deixou os índios confusos com a declarada solidariedade do roqueiro.
Depois de deixar Altamira sem ter comparecido ao Centro Comunitário Municipal, local das reuniões, como era esperado, Sting voou para novo périplo por aldeias do alto Xingu. Nem Megaron nem o cacique txucarramãe Raoni pareciam dispostos a acompanhar Sting numa audiência com a direção da Funai, em Brasília, enquanto os assessores do cantor empenhavam-se em subestimar as arestas surgidas em Altamira (Revista “Afinal” 7.3.89).
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