O título era esse mesmo aí de cima: "Abandonados como o seringal", em que eu procurei demonstrar a permanência de uma realidade tão antiga quanto a dos meus avós e de milhares de outros homens e mulheres que vieram do Nordeste para o mundo distante da extração do látex e produção primária da borracha.
A seguir, a reportagem em seu texto integral:
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“...Aos anônimos desbravadores, gente humilde, gente sem crônica definitiva, que à extração da borracha entrega a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. (...) Este livro, que é um curto capítulo da obra que há de registrar o sofrimento dos humildes através dos séculos, em busca de pão e de justiça” (Ferreira de Castro, no Pórtico de sua obra-prima “A Selva”).
Mãos deformadas pelos calos que sustentam a faca que sulca dia após dia o tronco da seringueira, o vestido roto e quase confundindo-se com uma manta de cernambi, as pernas cansadas de varar mata adentro e mata afora, numa rotina que já dura 32 anos, todo um passado e nenhum futuro, Alzira Paulino do Nascimento, ou Alzira Balão, não é uma personagem do romance de José Maria Ferreira de Castro, escrito a partir das imagens que ele, adolescente, gravou nos confins da Amazônia nos primeiros dias deste século.
Alzira mora em Belterra e ainda hoje carrega seus apetrechos e sua velhice, sugando as ralas gotas de um seringal tão abandonado quanto ela própria. Se não é uma personagem do romance, confunde-se plenamente com o seringueiro do romancista, tristemente comprovando que, do começo ao fim do presente século, os humildes continuam sem pão e sem justiça. Lá, como hoje, seu destino é comum e só há a certeza da miséria e do abandono.
Como Alzira, Maria Guimarães Pereira dos Santos foi admitida como cortadora de seringueira em 1951. Maria José Almeida, em 1957, Raimundo Gomes Moreira em 1956. Como esses quatro veteranos, outros 243 cortadores de seringa trabalham em Belterra, para o Ministério da Agricultura, sem contrato assinado, sem direito trabalhista.
Raimundo Pereira Marques, 62 anos, e sua mulher Antônia de Lima Marques, de 42, estão com um dos seis filhos doente e, numa consulta, o médico falou que é preciso uma operação. A cirurgia custa dez mil cruzeiros. Por isso o casal se embrenha, a partir das quatro e meia da manhã, nas matas da Estrada Dez, com alguns dos filhos. Às seis da manhã eles já rasparam 40 árvores e o leite já escorre através de uma bica improvisada com uma folha seca, caindo dentro de uma tigela presa ao tronco da seringueira por uma forquilha de pau seco.
“Esse trabalho todo - diz Antônia - é para ver se a gente consegue uns 16 mil cruzeiros no fim do mês”. Na folha de pagamento, fechada no dia 15 de maio, pode-se observar um felizardo com uma retirada de 87 mil cruzeiros, só que lá não está explicitado se o cortador levou para o seringal a mulher e todos os filhos e que o trabalho começou muito antes de o sol nascer. Também não diz que aquela família teve a sorte de cortar numa área de seringueiras novas, como na altura da estação nº 3, aliás o único local com árvores novas, dentre as 12 estações coletoras de Belterra.
Trabalho familiar
Na folha de pagamento pode-se ainda ver um que retirou 78 mil cruzeiros, outro, 44 mil. Mas há disparates como o fato de muitos somente receberem 13 mil, 10 mil, 7 mil, 6 mil e até 3 mil cruzeiros por mês. Se, para os fiscais e funcionários da administração, isso pode ser qualificado como “preguiça”, vê-se claramente que, quando se trata de trabalho solitário, nos casos em que somente o pai, ou a mãe, ou um irmão mais velho pode cortar a seringa, a produção cai brutalmente. E essa é a remuneração média de cada indivíduo, com a agravante ou a atenuante de ele conseguir uma área onde as seringueiras estejam em melhor estado ou imprestáveis como a quase totalidade do outrora exuberante seringal de Belterra.
Antes do meio-dia, os cortadores chegam, cada grupo, à sua estação coletora. Ali, o leite vai ser classificado e feitas as anotações na ficha de cada trabalhador, de acordo com a tabela fornecida periodicamente pela Delegacia Estadual do Ministério da Agricultura - DEMA. Essa classificação vai de 10 graus até 45 graus e o preço pago por cada grau de látex natural está tabelado em Cr$ 230,00. Como a classificação média varia entre 30 e 35 graus, o preço por quilo varia entre Cr$ 69,00 e Cr$ 80,50. Sendo de cinco a seis quilos a média diária de cada trabalhador (raramente, sozinho, quase sempre com familiares) a remuneração por uma jornada está entre Cr$ 414,00 e Cr$ 483,00
Deve-se levar em conta, no cálculo da retirada mensal de cada trabalhador-família, que não se pode multiplicar a média da remuneração diária simplesmente por 30 dias, uma vez que, sem contrato de trabalho e sem os direitos normais previstos na lei, ele somente recebe pelo que produz, vale dizer, faltas por doenças ou uma forte chuva impedirão o cortador de ganhar. Estranhamente chamados de “arrendatários”, eles funcionariam como trabalhadores autônomos dentro de uma propriedade, sendo que, no caso, o proprietário é o governo.
A retirada mensal pode subir um pouco com alguns quilos de cernambi que eles arrancam dos troncos das árvores, dos sulcos antigos por onde correu o látex. Para esse subproduto, o preço estipulado é de Cr$ 158,00 o quilo. Esse mesmo cernambi, chamado em rama ou a granel, é revendido pela “Companhia” (nome como é conhecida a administração de Belterra, herança dos tempos da Companhia Ford Industrial) a firmas particulares, sem qualquer forma de beneficiamento, ao preço de Cr$ 430,98, isto é, com o lucro bruto de 170%, sem ônus de entrega. O chamado cernambi virgem prensado, com um mínimo de beneficiamento, salta para Cr$ 590,70. E o látex centrifugado (com a retirada de um pouco da água natural do produto) é repassado aos particulares a Cr$ 568,70 o quilo.
Borracha desviada
Os desvios de pequena parte da produção são frequentes, levados a efeito por trabalhadores mais afoitos, visivelmente premidos pela virtual impossibilidade de sobreviver do trabalho honesto, honestidade que, de resto, não existe da parte do patrão para com seus empregados. Há poucas semanas três deles foram presos por venderem cernambi nos barcos que descem o rio Tapajós rumo a Santarém. Os barqueiros compram o produto ao preço médio de 350 cruzeiros, podendo chegar até 400 cruzeiros, dependendo da qualidade do produto. Esse preço vigora entre os compradores particulares de Santarém.
Assim, pagando com uma inexplicável diferença de 200 cruzeiros a “Companhia”, na prática, estimula o desvio. Gravíssimo também é o pagamento do látex natural, cotado em Belterra, ao cortador, a 2 cruzeiros e 30 centavos o grau, quando o preço mínimo estipulado pela Sudhevea é de 12 cruzeiros, havendo compradores que pagam até 12,50 cruzeiros, hoje, na praça de Santarém. “Muita gente diz que há desvio de produção, mas a gente não vê”, diz o administrador de Belterra, Base Física do Ministério da Agricultura, Francisco Antônio das Chagas, remetendo todos os problemas dos cortadores de seringa, também chamados de “safristas”, aos idos de 1954, quando da gerência do Instituto Agronômico do Norte - IAN.
Hoje, as atividades de pesquisa estão muito reduzidas e o que há é um forte comércio baseado nas mal calculadas 500 mil seringueiras ainda aptas, a quase totalidade delas exauridas, parte de uma plantação não renovada, a não ser em pequena escala, num trabalho mais recente, hoje ao encargo da Embrapa. É exatamente aqui que 18 felizardos cortadores ganham um pouco melhor com árvores novas. Além do látex e do cernambi, há também o comércio dos citros e dos clones.
Há um mês esteve em Belterra o engenheiro químico Jack Zilles, norte-americano que foi chefe de campo na época da Companhia Ford Industrial e foi o responsável pela plantação de vastas áreas de seringais. Há 39 anos ele não via suas árvores e, a diferença mais marcante que viu na região, na entrevista que deu ao jornal “Sarasota Herald Tribune”, ao retornar aos Estados Unidos, foi a de ter chegado aqui, em 1931, a bordo de um avião monomotor com capacidade para seis passageiros, e desta vez, ter chegado ao interior da Amazônia num Boeing 737. Quanto aos seringais, mostrou até certo otimismo pelo fato de as árvores não haverem morrido todas, sufocadas pela densa mataria que cresceu em meio à plantação, uma paisagem bem diferente do tempo em que foram ali deixados 3 milhões e 500 mil árvores novas e bem cuidadas nos 7 mil hectares de área plantada. Jack Zilles advoga a entrega de Belterra à Goodyear, mas há também informações, seguras, de que a Pirelli está interessada na herança de Ford, já tendo até mandado um técnico observar extra-oficialmente a área de Belterra.
Cansaço
Em alguns meios técnicos comenta-se, embora com reservas, que a idéia em certos setores do Ministério da Agricultura é “matar Belterra pelo cansaço”, expressão que seria mais apropriada se se referisse aos trabalhadores de Belterra. Quando o cansaço se tornar insuportável, acreditam alguns, entrará em cena uma empresa privada, com forte chance de ser uma multinacional, tal como falou o velho chefe de campo que esteve aqui há um mês, para sugerir a presença da Goodyear. Teria Mr. Zilles retornado a Belterra apenas numa viagem sentimental?
Dados de uma fonte que preferiu o anonimato indicam que, de uma pesquisa executada em 1981, chegou-se à informação de que atualmente existem em torno de 100 mil seringueiras intocadas na antiga “plantation”. Esse fato viria reforçar a tese do cansaço e essas árvores não estariam apenas “abandonadas”, mas guardadas como reserva para futuro aproveitamento pela empresa privada, a despeito dos prejuízos que isso causa aos trabalhadores que hoje são obrigados a sulcar troncos exaustos, sobre os quais não existe nenhum cuidado, haja vista a maior parte das árvores estar cheia de nós, resultado de uma atividade predatória, que vai esterilizando as seringueiras, centenas delas ainda novas, mas que já não produzem o leite como seria de esperar caso houvesse racionalidade e a mínima preocupação profissional ou científica.
Uma dúvida, com certeza, não existe, para quem conhece um pouco de Belterra: trata-se de um excelente negócio, mesmo hoje, com toda a carga de improvisações ali existente. E a dificuldade para que o governo retire de seus ombros esse “peso”, em proveito de algum grupo privado, estaria exatamente na dívida social bem representada pelos cortadores da seringa, esses párias existentes ao lado dos 210 funcionários da “Companhia”. Outros problemas estariam retardando uma “solução”, como a presença de muitos outros moradores sem vínculos com a Ministério da Agricultura, a ponto de estimar-se hoje a população local em 7 mil habitantes, segundo informou o administrador Chagas.
Os dados oficiais do mês de abril mostram que foram vendidas, pela administração de Belterra, 40 toneladas de cernambi, com uma receita de 30 milhões de cruzeiros. Esse dinheiro vai direto aos cofres do Ministério da Agricultura. No período, a folha de pagamento dos cortadores foi de 5 milhões e 300 mil cruzeiros. Para os responsáveis por essa produção, o próprio administrador Chagas esboça uma sugestão: “Se poderia começar por amparar os que têm mais de cinco anos de serviço, pelo menos uma parte deles já teria direito à aposentadoria”.
Os trabalhadores não têm sequer direito ao Funrural, sob a alegação de que não há figura jurídica que os enquadre. Sem direito a férias, dias remunerados, à assistência médica e a qualquer benefício, somente do ano passado para cá começaram a ganhar o direito a uma consulta médica e aos remédios da CEME.
Francisco Souza de Oliveira, 55 anos, cortou seringa desde 1960. Em 1980 morreu, depois de uma operação de hérnia. Hoje, a viúva Maria da Conceição sai de madrugada para as matas, deixando em casa a filha mais velha, Eva Virgínia, de 15 anos, cuidando dos irmãos menores. O popular Manoel Chumbinho, da estação da Estrada Oito, é considerado um campeão. Com um filho menor, ele consegue a média diária de 15 quilos de látex natural, ou Cr$ 1.207,50 numa jornada vitoriosa. E João Gileno da Silva, com seus dois filhos, chega até os 25 quilos, na privilegiada estação nº 3, onde são recolhidos por dia cerca de 500 quilos de látex e 100 quilos de cernambi, com o trabalho de apenas 18 cortadores.
Mas há estações onde 40 cortadores mal conseguem, juntos, retirar 300 quilos numa jornada. Todos eles concordam que poderiam retirar mais se a “Companhia” fornecesse a faca, arame para as tigelas e as bicas, tudo hoje improvisado com folhas secas e forquilhas de mato, ensejando o desperdício. Na campanha eleitoral passada, muitas promessas foram feitas aos párias de Belterra. E o governo sabe que, nas margens do Tapajós, sob sua chancela, abrigam-se formas medievais de relacionamento no trabalho.
(22.5.83)
P.S: Belterra foi elevada à condição de município em dezembro de 1995, quando desligou-se do Ministério da Agricultura.
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