Uma das mentes mais brilhantes da história do futebol, Johan Cruyff, que completaria 75 anos nesta segunda-feira (25), cresceu, jogou e morreu amando o Ajax. Quando criança, morava a algumas quadras do estádio De Meer e frequentava os corredores do clube enquanto sua mãe, faxineira, trabalhava ali.
Cruyff se tornou jogador profissional e tricampeão europeu com a equipe de Amsterdã, transformando-se em um jogador de culto. No fim da carreira, após passar por Barcelona, Levante e pelo futebol dos Estados Unidos, retornou para o seu lugar no mundo com o desejo de encerrar a carreira onde tudo havia começado, no time do coração.
Na temporada 1982/1983, já veterano (tinha 36 anos), ajudou o clube a conquistar a dobradinha com os títulos da liga e da copa nacionais. Ele pretendia renovar seu contrato e jogar por mais um ano antes de pendurar as chuteiras. Os diretores, entretanto, tinham outro plano.
"O Ajax ainda era meu clube, mas as pessoas que o administravam se recusaram a negociar comigo. Soube que diziam que eu era velho e gordo demais, e que estava ganhando peso. Mas eu podia lidar com essas objeções. Só que eles também exigiam que eu ficasse satisfeito com um salário normal e, bem, eu não fiquei", disse o craque holandês em sua autobiografia, publicada em 2016.
O ídolo tinha um acordo com o Ajax, costurado por seu sogro, Cor Coster, que determinava a divisão das receitas de bilheteria entre ele e o clube. Quanto mais sucesso em campo, mais torcedores nas arquibancadas e mais dinheiro para ambas as partes. Mas a diretoria passou a achar que ele recebia demais e queria a sua fatia do bolo.
Os cartolas então propuseram a ele um novo contrato com piso salarial. Cruyff recusou.
Sua carreira terminaria longe do estádio que chamou de casa desde a infância. Mais precisamente em Roterdã, no estádio De Kuip, casa do , grande rival do Ajax. Um destino impensado, dada a rivalidade entre os dois clubes.
"Eu genuinamente tento explicar que é como Mohamed Salah deixando o Liverpool para jogar por um claudicante Manchester United", conta Andy Bollen, autor de "Fierce Genius" (Pitch Publishing), livro sobre a temporada em que Cruyff defendeu o Feyenoord.
"É uma rivalidade profunda, real. Há também um componente de classe. O Ajax é de Amsterdã, liberal e elitista. O Feyenoord é de Roterdã, severamente bombardeada durante a Segumda Guerra, trabalhadora, portuária."
O acordo com o clube de Roterdã previa justamente o tipo de acerto que o Ajax não quis oferecer: a divisão de receitas com bilheteria. E De Kuip, para o bem dos cofres de Johan Cruyff, era maior que De Meer.
Campeão da Copa dos Campeões da Europa em 1970, o Feyenoord não vivia período glorioso na década de 1980. Seu último título na liga havia sido conquistado na temporada 1973/1974. Para complicar ainda mais o quadro, não só o Ajax tinha levantado a taça nos dois anos anteriores como o PSV reivindicava um lugar de protagonismo no futebol holandês.
Em seu retorno à Holanda, Cruyff mostrou que ainda reunia forças para jogar em bom nível. Mas a torcida, de cara, recebeu mal a incorporação do ídolo rival.
"Feyenoord sempre, Cruyff nunca", dizia uma das faixas nas arquibancadas de De Kuip nos primeiros jogos do time com o novo reforço.
Ele precisou convencer o público. Já não eram tão comuns as arrancadas dos tempos de Laranja Mecânica, mas o talento estava intacto. Mais meio-campista que atacante, Cruyff se aproveitou de uma posição recuada no campo para servir seus colegas com passes precisos e infiltrar como elemento surpresa.
Além de sua chegada, despontava na equipe um meia-atacante alto e com dreadlocks que apenas iniciava sua trajetória no futebol profissional, Ruud Gullit. Ele, que gostava de jogar centralizado, foi para a ponta direita por recomendação do veterano companheiro.
"Gullit pensava que Cruyff só queria mais espaço com ele fora do caminho. Quando Cruyff explicou que o ritmo, a força e a habilidade de Gullit seriam capazes de deixar defensores para trás e, além de dar bons cruzamentos, chegar para finalizar, Gullit enxergou o mérito nessa mudança", diz Bollen.
O começo na liga holandesa foi promissor: cinco vitórias e um empate em seis partidas. Até chegar o primeiro clássico com o Ajax, na capital do país, reencontro do clube de Amsterdã com o Cruyff.
Apostando nos contra-ataques e na velocidade de um jovem Marco van Basten, os donos da casa simplesmente atropelaram o Feyenoord e golearam por 8 a 2.
Johan Cruyff, ao seu estilo, afirmou de maneira um tanto surpreendente que aquele resultado faria o clube de Roterdã arrancar para o título. "Esperem e verão", disse ele horas depois da vexatória derrota ao programa futebolístico mais visto do país.
Artifício motivador ou profecia? O fato é que o Feyenoord perdeu somente mais um jogo durante toda a campanha (para o Groningen), que contou com uma sequência de 15 confrontos seguidos sem perder na qual registrou 12 vitórias. Entre elas, uma goleada de 4 a 1 sobre o Ajax, em De Kuip. Cruyff marcou o seu no minuto 14, número que o consagrou no clube de Amsterdã e na seleção holandesa.
Com 11 gols em 33 apresentações, o craque holandês foi fundamental na conquista da liga nacional e ainda faturou também a Copa da Holanda, eliminando o Ajax nas oitavas de final. Na decisão do torneio, o Feyenoord bateu o Fortuna Sittard por 1 a 0 e confirmou a conquista.
"Meu último ano como jogador de futebol no Feyenoord foi uma grande festa. Quando penso em retrospecto, ainda não consigo entender como aquilo aconteceu. Como foi possível? É incrível especialmente quando se considera que começamos perdendo de 8 a 2 do Ajax no Estádio Olímpico. Mas as pessoas esquecem que um resultado como esse é muitas vezes o começo de uma ressurreição. É assim que funciona", afirmou ele na autobiografia, que chegou às livrarias meses depois de sua morte, em março de 2016.
Suas partidas com a camisa do clube de Roterdã, logo ele, rival durante toda uma vida, foram as últimas de uma carreira que o levou ao panteão dos maiores da história.
No ano seguinte, quando decidiu iniciar sua trajetória como treinador, recebeu um chamado. Era do Ajax. Queriam que ele fosse técnico da equipe. Dessa vez, houve pouca resistência da parte dos diretores de Amsterdã quanto às exigências contratuais.
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