Guerra e pandemia expõem fraquezas de Rússia e China ao mundo e às suas populações

THE NEW YORK TIMES

A década passada pareceu boa para os regimes autoritários e difícil para os democráticos. Ciberferramentas, drones, tecnologia de reconhecimento facial e redes sociais, tudo isso pareceu tornar os eficientes autoritários ainda mais eficientes e fazer as democracias ser cada vez mais ingovernáveis. O Ocidente perdeu autoconfiança –e os líderes russos e chineses esfregaram sal na ferida, dizendo a quem quisesse ouvir que esses caóticos sistemas democráticos eram uma força esgotada. E então aconteceu algo inteiramente inesperado: tanto a Rússia quanto a China deram um passo maior que as pernas.

Vladimir Putin invadiu a Ucrânia, e, para seu próprio espanto, provocou uma guerra indireta com a Otan e o Ocidente.

A China insistiu que era bastante inteligente para ter sua própria solução local de uma pandemia, deixando milhões de chineses insuficientemente protegidos ou desprotegidos e, na prática, desencadeando uma guerra com um dos vírus mais contagiosos da mãe natureza: a mutação ômicron do Sars-CoV-2. Isso a levou a impor um lockdown sobre toda Xangai e partes de 44 outras cidades, envolvendo cerca de 370 milhões de pessoas.

Em suma, tanto Moscou quanto Pequim se veem de repente tendo que enfrentar forças e sistemas muito mais poderosos e implacáveis do que jamais previram encarar. E as batalhas estão expondo as fraquezas de seus próprios sistemas ao mundo e às suas próprias populações. Tanto assim que o mundo agora precisa se preocupar com a instabilidade nesses dois países.

A Rússia é fornecedora-chave de trigo, fertilizante, óleo e gás natural para o mundo. E a China está na origem de ou é um elo crucial em milhares de cadeias de fornecimento global de manufaturados. Se a Rússia for isolada do mundo e a China passar um período prolongado sob lockdown, cada canto do planeta será afetado. E não se trata mais de uma possibilidade remota.

Comecemos com Putin. Ele se convenceu de que, pelo fato de seu Exército ter esmagado um bando de adversários militares desorganizados na Síria, na Geórgia, na Crimeia e na Tchetchênia, seria capaz de rapidamente devorar um país de 44 milhões de habitantes, a Ucrânia, que nos dez anos anteriores vinha se aproximando do Ocidente e estava sendo tacitamente armado e treinado pela Otan.

Está sendo uma debacle militar e econômica para a Rússia até agora. Mas, igualmente importante, a guerra expôs precisamente quão profundamente o chamado "sistema" de Putin é alicerçado sobre as mentiras de baixo para cima –todos dizendo a seus superiores o que estes querem ouvir, chegando até Putin— e as perfurações para baixo, ou seja, a extração dos recursos naturais da Rússia, enriquecendo alguns poucos russos, em lugar de atrelar os recursos humanos do país e empoderar os muitos.

A Rússia de Putin foi erguida basicamente sobre petróleo, mentiras e corrupção. Esse não é um sistema resiliente.

 Isso foi evidenciado desde a véspera da guerra, quando Putin promoveu uma reunião televisionada com seus principais assessores de segurança nacional e ninguém menos que Serguei Narishkin, chefe do Serviço de Inteligência Externa russo, pareceu não ter certeza de qual mentira que Putin queria que lhe contassem.

Putin disse que as províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk deveriam ser autorizadas a tornar-se Estados independentes, e então pediu a opinião de seus assessores, para que confirmassem a sua. Mas Narishkin pareceu ter pensado que Putin queria que lhe dissessem que as duas províncias deveriam ser anexadas à Rússia.

Enquanto ele gaguejava a resposta incorreta, Putin, sem uma pitada de ironia, se irritou e mandou duas vezes que ele "falasse diretamente" —como se isso ainda fosse possível na Rússia de Putin. Foi apenas depois de Narishkin dizer a Putin a mentira que este obviamente queria ouvir que o presidente rosnou: "Pode se sentar agora".

Quantos militares russos, assistindo àquela humilhação, estariam dispostos a falar a verdade a Putin sobre a Ucrânia quando a guerra começou a ir mal? Quando Moscou enfrentou adversários em Geórgia, Síria, Crimeia e Tchetchênia, pôde simplesmente resolver qualquer problema bombardeando indiscriminadamente.

Mas agora, que as forças de Putin se viram em guerra com o Exército ucraniano —altamente motivado e com uma indústria doméstica de armas apoiada com treinamento e algumas das melhores armas de precisão da Otan—, a decrepitude russa começou a se evidenciar. Os tanques e as forças logísticas russas foram dilacerados no oeste da Ucrânia, virando ferro-velho incendiado.

Os principais impactos do conflito entre Rússia e Ucrânia para a economia  

A Rússia é um dos grandes produtores de petróleo, e um conflito militar afeta o mercado do produto. O preço do barril superou no dia 24 de

 A China é um país muito mais sério que a Rússia: é erguida não sobre petróleo, mentiras e corrupção (se bem que tenha bastante desta última), mas sobre o trabalho árduo e o talento manufatureiro de sua população, comandada por um Partido Comunista que governa de cima para baixo, com mão de ferro, mas está sempre disposto a aprender com o exterior. Ou que estava sempre disposto no passado, mas não tanto assim mais recentemente.

O sucesso econômico chinês e o sentimento de orgulho que isso gerou parecem ter persuadido a liderança do país a achar que podia basicamente enfrentar uma pandemia sozinha.

Produzindo suas próprias vacinas, em lugar de importar outras melhores do Ocidente, e redirecionando seu altamente eficiente sistema de vigilância e controle autoritário para impedir viagens, realizar testes em massa e colocar em quarentena quaisquer indivíduos ou áreas em que o coronavírus tivesse aparecido, a China apostou numa política de "Covid zero". Se ela conseguisse passar pela pandemia com menos mortes e uma economia mais aberta, seria mais um sinal para o mundo —um sinal importante— de que o comunismo chinês era superior à democracia americana.

china, terra do meio

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Mas ao mesmo tempo que zombava do Ocidente, Pequim agiu com pouco caso chocante na vacinação de seus próprios idosos. Isso não teve tanta importância quando ela pôde usar controles populacionais rígidos para frear a propagação de variantes anteriores. Mas tem importância agora, porque as chinesas Sinopharm e Sinovac parecem ser bem menos eficazes contra a ômicron que as vacinas de mRNA fabricadas no Ocidente —embora ainda sejam eficazes para reduzir as hospitalizações e mortes.

O Financial Times divulgou recentemente, citando um estudo da Universidade de Hong Kong, que hoje na China mais de 130 milhões de pessoas "com 60 anos ou mais ou não foram vacinadas ou receberam menos de três doses", o que as coloca "em perigo maior de apresentar sintomas graves ou morrer se contraírem o vírus".

Esse fato levou Pequim a optar pelo lockdown completo de Xangai, algo que tem sido tão mal administrado que, ao que consta, os habitantes estão tendo dificuldade em obter alimentos.

 David L. Katz, especialista americano em saúde pública e medicina preventiva, me explicou que o problema com o tipo de lockdown draconiano imposto pela China é que você garante que a população desenvolva pouca imunidade natural por ter contraído e sobrevivido ao vírus.

Assim, se o vírus passa por mutações globais, como fez com a ômicron, e você tem "uma vacina pouco efetiva, virtualmente nenhuma imunidade natural na população e milhões de idosos não vacinados, você está numa situação péssima, e não há saída fácil".

Com a mãe natureza não se brinca nem se faz propaganda política —ela é implacável.

Moral: os sistemas autoritários altamente coercivos são sistemas baseados em pouca informação. Por isso mesmo, avançam às cegas mais vezes do se dão conta. E mesmo quando a verdade chega até os altos escalões, ou quando a realidade na forma de um adversário mais poderoso ou da mãe natureza bate na cara deles com tanta força que não pode ser ignorada, seus líderes têm dificuldade em mudar de trajetória, isso porque suas pretensões de serem presidentes vitalícios se baseiam em suas pretensões de ser infalíveis. E é por isso que Rússia e China estão em apuros.

Estou profundamente preocupado com nosso sistema democrático. Mas enquanto ainda pudermos afastar líderes incompetentes pelo voto e manter ecossistemas de informação que exponham as mentiras sistêmicas e desafiem a censura, poderemos nos adaptar numa era de transformações aceleradas.

E essa é a maior vantagem competitiva que um país pode ter hoje em dia.