Sob nova doutrina, EUA puxam expansão militar; Turquia evita fiasco de cúpula, mas divisões persistem
Em 2010, quando aprovou seu mais recente documento de doutrina, a Otan habitava um mundo em que fazia papel de coadjuvante no Afeganistão, a China era um país distante, e a Rússia, descrita como uma parceira estratégica.
Quarta (29), 12 anos depois, a aliança militar liderada pelos EUA anunciou sua refundação, cortesia da Guerra da Ucrânia, entronizou a China como uma ameaça potencial e se prepara para um período de expansão contra Moscou ancorada em ações americanas e na entrada de Suécia e Finlândia no clube.
O novo Conceito Estratégico da Otan volta à fundação do grupo para encontrar sua razão de ser: combater Moscou com dissuasão militar. Os russos querem "estabelecer esferas de influência e controle direto por coerção, subversão, agressão e anexação", diz o texto, que ecoa os temores de uma Terceira Guerra.
Aos integrantes da Otan, reunidos em Madri, o presidente Volodimir Zelenski voltou a pedir mais armas, particularmente artilharia. Nas últimas semanas, o balanço militar pendeu para o lado russo no Donbass, mas há também o interesse de Kiev em pintar um quadro ainda mais dramático para se armar melhor.
Já Putin disse à agência russa Interfax que a Otan tem "ambições imperiais", mas voltou a dizer que sua resposta à adesão nórdica será proporcional ao tipo de infraestrutura militar instalada nos países. Ambos já disseram que não querem bases da Otan em seu território. O russo também voltou a afirmar que seu objetivo é "libertar o Donbass e ter garantias de segurança", e que suas forças "avançam".
"A escalada militar de Moscou, incluindo as regiões dos mares Báltico, Negro e Mediterrâneo, além de sua integração militar com a Belarus, desafia nossas segurança e interesses", completa o Conceito, que aponta para as ameaças de uso de armas nucleares feitas por Putin nesta crise e o "inovador e disruptivo" desenvolvimento de armas com capacidade dupla, atômica e convencional, como mísseis hipersônicos.
Para fazer frente a isso, mais gasto militar: em 2021, só 8 dos 30 membros da Otan aplicaram mais do que 2% de seu PIB em defesa, como a aliança preconiza. É mais do que os três países que o faziam em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e deitou a fundação da guerra ora em curso, mas ainda longe da meta.
"Enfrentamos uma mudança radical", disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, para quem em 2022 nove membros chegarão aos 2% ou mais, e em 2024, 19. A meta será "o piso, não o teto" do gasto militar —com efeito, os EUA puxam o comboio com 3,57% do maior PIB do mundo para a área militar.
É uma vingança tardia de Donald Trump, o mercurial presidente americano que colocou a Otan contra a parede, a ponto de fazer o líder francês, Emmanuel Macron, dizer que o clube estava em "morte cerebral".
Seja como for, são os americanos os líderes, e por isso o presidente Joe Biden fez o anúncio mais concreto de aumento de musculatura militar contra a Rússia. Os EUA terão pela primeira vez no pós-Guerra Fria um quartel-general de Exército no Leste Europeu, na belicosa e antirrussa Polônia.
"Putin destruiu a paz na Europa. Os EUA e seus aliados estão se mobilizando, provando que a Otan é mais necessária agora do que nunca", disse Biden. Um dos motivos da invasão foi impedir a adesão da Ucrânia à Otan, congelada desde um convite feito a ela em 2008, renovado sem muita convicção no Conceito.
O reforço incluirá mais dois destróieres baseados na Espanha —hoje são quatro—, dois novos esquadrões com caças F-35 no Reino Unido, brigadas não permanentes nos Estados Bálticos e na Romênia e defesa aérea adicional para Alemanha e Itália. Trata-se do maior deslocamento de forças americanas na Europa desde a Guerra Fria. Hoje há 100 mil soldados de Washington no continente, e é provável que haverá mais. Ao todo, a Otan diz que aumentará de 40 mil para 300 mil seu efetivo de reação rápida.
Em números gerais, a aliança já é bem superior à Rússia: gastou com defesa em 2021 US$ 1 trilhão, ante US$ 62 bilhões de Moscou, e tem 3,28 milhões de soldados, frente a 900 mil russos. Mas esses dados são ilusórios, como a natureza do combate atual mostra, e o Kremlin tem o maior arsenal nuclear do mundo.
Em troca de tal comprometimento, Biden viu sua principal preocupação estratégica atendida pelo novo Conceito: a China. O documento toma o cuidado de não chamar o gigante asiático de adversário, mas até aí também diz que gostaria de ter diálogo com Moscou. Afirma, contudo, que é preciso estar pronto para enfrentar as "táticas coercitivas e esforços para dividir a aliança" por parte de Pequim.
Mais relevante ainda é a simbólica presença de representantes de Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coreia do Sul como convidados da cúpula, que acaba nesta quinta (30). Pequim respondeu diretamente ao que vê como uma intromissão em seu quintal estratégico.
"As expansões depois da Guerra Fria não só falharam em tornar a Europa mais segura, mas também semearam as sementes do conflito [na Ucrânia]. Não podemos permitir que esse tipo de turbulência e conflito que está afetando partes do mundo ocorra na Ásia-Pacífico", afirmou o representante chinês na ONU, Zhang Jun, na noite de terça (28).
Fonte: BBC
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