Ao analisar dados de
Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia pós-pandemia, pesquisadora
brasileira verifica que os países que adotaram corretamente o protocolo da
instituição tiveram melhores resultados contra a doença
RIO - Em casos de epidemia e pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem uma recomendação central enquanto não existir vacina ou medicamento: os países devem seguir as chamadas intervenções não farmacológicas (INFs), um grupo de medidas de combate imediato à doença, entre as quais o isolamento social, testagem em massa e adoção por parte dos governos de uma comunicação de risco.
A adoção correta das medidas estabelecidas no protocolo da OMS é o fator decisivo para deter o avanço da doença, como reafirma a pesquisa realizada em alguns países da América do Sul pela brasileira Maíra Fedatto, mestre em Política Internacional e Comparada da Universidade de Brasília (UNB), doutoranda em Relações Internacionais e Saúde Global da Universidade de São Paulo (USP) e do King’s College, na Inglaterra, e consultora em projetos de saúde.
Nos últimos meses ela analisou a reação de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia após à chegada da pandemia. A conclusão é que os quatro países que seguiram a principal orientação da OMS obtiveram melhores resultados, com destaque para Uruguai e Paraguai. O Brasil, lamentou a especialista, foi o único que virou as costas para o manual global de luta contra pandemias.
O objetivo das INFs é retardar a chegada do vírus, a altura e o pico da pandemia, reduzir a transmissão através de medidas de proteção pessoal ou ambiental, conter o número total de infecções e, portanto, o número total de casos graves. Foi assim que quatro dos cinco países estudados pela pesquisadora conseguiram evitar uma explosão de casos nos últimos três meses e meio.
A batalha não está ganha, já que a América Latina é hoje o epicentro mundial da pandemia. Mas os quatro estão em muito melhor situação que o Brasil e um deles, o Uruguai, voltou a ter acesso à União Europeia (UE), que na semana passada reabriu suas fronteiras a alguns países em que a pandemia é considerada sob controle.
— O Uruguai tem vários elementos que explicam sua situação atual. Com poucos casos, o governo aplicou INFs e a adesão da cidadania foi impressionante. Mesmo não sendo obrigatório, pesquisas mostraram que 90% da população respeitou o isolamento social — comenta Maíra.
Ela
lembrou ainda, que num país de apenas 3,5 milhões de habitantes, a desigualdade
social é muito inferior à dos vizinhos. O Uruguai tem um bom sistema de saúde,
fez testagem em massa e tem a maior média de leito hospitalar por habitante da
América do Sul: 2,8 para cada mil habitantes. No estado brasileiro do Amazonas,
existem 7 leitos para cada 100 mil pessoas.
— Além das INFs, o Uruguai tem uma boa educação, o que permitiu criar rapidamente uma sólida consciência coletiva. Hoje, o governo está atacando focos isolados, especialmente na fronteira com o Brasil —frisa a pesquisadora.
No caso paraguaio, que não conta com um sistema de saúde forte como o uruguaio, o governo fechou o país e aplicou uma rígida quarentena em tempo recorde. As fronteiras foram militarizadas e, entre meados de março e fim de maio, a população ficou confinada, sob controle militar nas ruas.
— A reabertura está sendo em quatro fases, e cada vez que surge um foco essa cidade ou departamento volta atrás. Uma ação muito coerente — observa Maíra.
DIFERENÇAS ENTRE PAÍSES
A importância das INFs ficou ainda mais clara nos últimos dias, na Bolívia. Entre quinta e sexta-feira da semana passada, o país, que vem afrouxando as medidas de distanciamento social, registrou 1.301 novos casos de contágio e 70 óbitos.
No começo, o governo implementou uma quarentena dura, restringiu as jornadas de trabalho, o transporte público e houve toque de recolher das 17h às 5h. Com o tempo, o relaxamento começou a trazer consequências.
A situação na Bolívia tem um complicador político: desde novembro do ano passado, com a saída sob pressão militar do ex-presidente Evo Morales (2006-2019), o país enfrenta tensões e o governo interino da presidente Jeanine Áñez é acusado de perseguir opositores. Um de seus decretos sobre a pandemia foi denunciado pela ONG Human Rights Watch, por considerá-lo uma estratégia para prender dirigentes da oposição.
A questão dos supostos abusos em matéria de direitos humanos, somada a duas trocas de ministros da Saúde (um deles preso, sob suspeita de corrupção), impediram o país, que tem um precário sistema de saúde, de ter melhores indicadores sanitários, apesar de ter adotado as INFs.
A Argentina é um caso misto, já que as medidas tomadas deram certo em grande parte do país, mas o plano falhou na chamada Área Metropolitana de Buenos Aires (Amba), e obrigou o governo do presidente Alberto Fernández a estender, recentemente, a quarentena mais longa do mundo.
Já são mais de 100 dias de isolamento na capital e região da Grande Buenos Aires, com indicadores sanitários que se deterioraram de forma expressiva nas últimas semanas. Segundo admitiram epidemiologistas que assessoram a Casa Rosada, o calcanhar de Aquiles do plano argentino foi a circulação do vírus em bairros populares.
Com a economia em frangalhos, mais uma vez, os argentinos mais humildes têm enormes dificuldades de respeitar o distanciamento social. Muitos vivem o dilema de se expor ao vírus ou passar fome.
'TEATRO DO ABSURDO'
A Covid-19 é uma doença com alta taxa de transmissibilidade que, lembra Maíra, pode levar qualquer sistema de saúde ao colapso. O Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil, destaca a pesquisadora, era considerado em 2018 o nono melhor do mundo. Mas o país optou por um caminho diferente ao de seus vizinhos e os resultados e projeções mostram que essa alternativa levou o Brasil a ser epicentro global da pandemia.
— O Brasil tinha tudo pra dar certo e demos bem errado. Hoje, com mil mortos por dia, estão reabrindo comércios. Um teatro do absurdo — conclui Maíra.
Para auxiliar em sua pesquisa, a brasileira contou com dados da Universidade de Washington, que projetou o avanço da doença no mundo a partir da situação atual e no pior cenário (caso as medidas como distanciamento social e o uso de máscaras não sejam respeitadas com rigidez, apesar do aumento de casos e mortes).
Por essas projeções, no início de outubro o número de óbitos decorrentes da Covid-19 no Brasil chegará a 166.362, pelo cenário atual. No pior deles, as mortes passarão de 340 mil. (O Globo)